Don Tapscott, guru das moedas virtuais: “Esta vaga da bitcoin vai continuar”

A internet evoluiu da área da informação para a área do valor graças à disrupção tecnológica trazida pela blockchain, uma tecnologia descentralizada de segurança que tem diversas aplicações (como as criptomoedas) e que ocupou a ribalta com a ‘bolha’ da bitcoin e de outras moedas digitais ao longo de 2017. A ‘internet do valor’ é o novo desafio em que o Governo português deveria basear uma economia de inovação, recomenda Don Tapscott

EXPRESSO.PT

Expresso entrevistou, por correio eletrónico, Don Tapscott e o filho Alexander, que é hoje o seu braço direito no Blockchain Research Institute, baseado em Toronto. Em 1992, o consultor canadiano foi dos primeiros a apontar “uma mudança de paradigma” trazida pela revolução digital e, um quarto de século depois, é considerado o guru desta nova tecnologia, idealizada em 2008.

Para o cidadão comum, a blockchain está associada ao crime e à economia subterrânea. Esta tecnologia vai conseguir libertar-se desse carimbo?
[Don Tapscott] Muitas pessoas associaram, de facto, a blockchain — e particularmente as moedas criptográficas — a uma ferramenta para criminosos ‘lavarem’ dinheiro. É verdade que os criminosos foram dos primeiros a aproveitar, mas isso também é verdade para qualquer tecnologia emergente na sua época — desde os telemóveis aos automóveis. Em última análise, a blockchain é uma força para a transparência, a prestação de contas e a prosperidade.

Mas não é um exagero considerá-la a maior inovação em ciência da computação até agora?
Claro que não. A blockchain representa a segunda era da internet. Durante décadas, tivemos a ‘internet da informação’. Agora temos a ‘internet do valor’, onde qualquer ativo com valor — desde dinheiro a ações em Bolsa ou música, votos em eleições e propriedade intelectual — pode ser transmitido, transacionado e gerido numa relação ponto a ponto. A confiança não é conseguida com intermediários, mas sim através da criptografia e de código inteligente.

Onde estão os Silicon Valleys desta nova tecnologia?
A natureza descentralizada desta tecnologia torna difícil imaginar um Silicon Valley para a blockchain. Mas, certamente, há ecossistemas e clusters que têm potencial para serem líderes. Como canadianos, somos, naturalmente, tendenciosos — o corredor entre Toronto e Waterloo parece-nos muito promissor. A China poderia ser um líder, mas algumas das ações draconianas do Governo de Pequim no último ano prejudicaram seriamente esse potencial.

Isso significa que os governos são o ator fundamental para a afirmação desta tecnologia ou a sua repressão?
Os governos estabelecem, de facto, as condições para o sucesso ou o fracasso. O Governo de Portugal deveria estar a trabalhar intensamente para construir uma economia de inovação em torno desta segunda era da internet. A primeira coisa que Portugal pode fazer, por exemplo, é ingressar no Blockchain Research Institute, onde estamos a desenvolver estratégias para a administração pública e em direção a oportunidades em muitos sectores.

A blockchain tornará os governos e os bancos centrais irrelevantes ou essa é uma utopia perigosa?
Não acho que os vá tornar irrelevantes. No entanto, pode servir para torná-los mais transparentes, responsáveis e eficazes. Já estamos a ver muitos governos e bancos centrais a adotarem esta tecnologia como meio de proteger a identidade dos cidadãos e melhorar a eficiência na forma como prestam serviços.

No final, os governos e os bancos centrais acabarão por dominar essa tecnologia?
Acabarão, sem dúvida, por encontrar o seu lugar nesta nova era digital. E, em última análise, isso será positivo para a sociedade. Aliás, muitos bancos centrais já estão a explorar a possibilidade de criar as suas próprias moedas fiduciárias digitais. E podemos esperar que isso se concretize realmente nos próximos anos.

O crescimento da geração da internet que Don anunciou pela primeira vez no final da década de 1990 ajudou a criar uma base de recursos humanos para a ‘mineração’ e um mercado de massa para essa tecnologia?
[Alexander Tapscott] Absolutamente. O único teto para o potencial da tecnologia blockchain é a nossa própria inovação e criatividade. Don disse, de facto, há muito tempo que os milenaristas [geração que atingiu a idade adulta no início do século XXI, também designada por geração Y] são injustamente criticados. É uma sorte ter uma tal geração tão inteligente a desenvolver esta tecnologia.

Muitos críticos acusaram a blockchain como uma verdadeira — mais uma — tecnologia assassina do emprego e com uma enorme pegada ecológica. Esses riscos são reais?
A acusação de que uma tecnologia matará empregos é uma das respostas mais comuns às inovações tecnológicas e está quase sempre errada. É verdade que a blockchain eliminará muitos intermediários, mas a inovação e a produtividade que traz para a economia serão positivas para o crescimento. Mais importante ainda: acreditamos que ajudará a garantir que a riqueza criada pela era digital será distribuída de forma mais justa e contribuirá para inverter a redução da classe média ocorrida nos últimos anos.

De facto, o processo intensivo em energia criado pela mineração de certas moedas criptográficas, particularmente pela bitcoin, é algo que deve ser abordado. Mas é importante notar que isso não é verdade para todas as moedas encriptadas. Cada vez mais, estas plataformas evoluirão para diferentes modelos que usem menos energia.

Há exemplos dessa preocupação com a pegada ecológica?
Recomendo atenção ao caso da Cosmos, uma rede de blockchains, como um dos principais exemplos de uma plataforma que está a apontar o novo caminho. Também são de destacar os modos como pode ser usada para reduzir enormemente a produção de carbono. A CarbonX está a construir uma rede ponto a ponto para o comércio de carbono. E não é exagero nenhum chamar à atenção para a quantidade de energia que pode ser economizada tornando as cadeias globais de fornecimento mais eficientes, precisamente usando a tecnologia blockchain.

Mas esta nova tecnologia não está a viver uma espécie de faroeste selvagem, sem regulação?
A governação é sem dúvida um dos maiores desafios que enfrenta a tecnologia blockchain. Não estou a falar só da atuação dos governos, mas sim da necessidade de o próprio ecossistema da blockchain se autoadministrar. Só porque esta tecnologia é descentralizada não significa que deva estar desorganizada. Temos escrito extensivamente sobre este tema.

Há uma ‘bolha’ financeira nas moedas criptográficas como alguns analistas proeminentes e até mesmo Prémios Nobel avisam?
Alguns economistas argumentam que há uma ‘bolha’, mas, na verdade, desde o início que o dizem. O que os meses mais recentes mostraram é que muitas pessoas em todo o mundo veem as criptomoedas como um ativo de riqueza mais seguro. Claro que haverá volatilidade e certamente derrocadas espetaculares. Mas, em geral, o valor das moedas criptográficas deverá aumentar. Mais importante ainda: não é a moeda em si que conta, é a tecnologia subjacente que revolucionará todas as empresas e todos os sectores.

Mas antevê uma derrocada financeira sobretudo na bitcoin?
Muitos especialistas da comunidade das criptomoedas têm falado sobre a possibilidade de um ‘desprendimento’ em relação à bitcoin, no qual ela seria substituída como a moeda dominante. No entanto, estas tecnologias são, por natureza, resilientes. Haverá tropeções, e muitas das chamadas ofertas iniciais de moedas [ICO, acrónimo em inglês para Initial Coin Offering] falharão. Mas esta vaga vai continuar.

A bolha das dot.com ajudou a criar grandes empresas bem reais, como a Amazon e a Google. Os críticos desta ‘bolha’ atual nas criptomoedas dizem que dela não há grande coisa a esperar no longo prazo. É assim?
Dizer isso é sugerir que entre as muitas empresas da blockchain e das moedas encriptadas atualmente no mercado não surgirão as Amazon e Googles do futuro. Não me parece.

A experiência com a encriptação da moeda ajudará a desenvolver uma sociedade quase sem numerário, como defendem alguns economistas, como Kenneth Rogoff?
De facto, não é só a moeda, em geral, como o próprio dinheiro em numerário que se está a tornar digital. Isso é precisamente o que a blockchain facilita.

Leia mais na edição impressa do Expresso de 06/02/2018

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